Na Conjur
Há um filme chamado Mera Coincidência (no original, Wag the Dog, de 1997, algo como “o rabo que corre atrás do cachorro”), estrelado por Robert de Niro e Al Pacino.
A história é a seguinte: o presidente dos Estados Unidos é flagrado com uma menina menor de idade no Salão Oval às vésperas do pleito em que concorria à reeleição.
Pânico, alvoroço e os “limpadores de crise” são chamados (De Niro e Al Pacino).
Estratégia: usar a “tese” da cortina de fumaça. E criam uma falsa guerra contra a Albânia. Filmam uma cena de guerra e noticiam que ficou um soldado atrás das linhas inimigas.
Era o soldado Shumann, cuja primeira parte do nome lembra o som de shoe (sapato). Pronto. Os EUA amanhecem cobertos de sapatos velhos. Só se fala no soldado “Shoe”. Até falsificaram um disco de vinil, para que a música sobre um velho sapato, inventada na hora, soasse com som arranhado. Uma “velha” música — sertaneja (country) — que mostrava o espírito americano.
Um sucesso. Não mais se falou sobre o Salão Oval e a menina. E o presidente conseguiu a reeleição.
Mera Coincidência é o nome do filme em português. Pois é. Por aqui, sem que precisemos falar do episódio das meninas venezuelanas (afinal, no filme há uma menina envolvida), parece que a imprensa — e não só ela — foi enganada por uma cortina de fumaça.
Vendo mais de perto, nossa guerra contra a Albânia é a própria fábrica de fake news. Todos olharam para “os sapatos do soldado perdido atrás das linhas da malvada Albânia” e esqueceram da PEC das Benesses e do restante da distribuição de verbas vedadas pela legislação eleitoral.
O imenso pacote de distribuição de dinheiro (taxistas e caminhoneiros até já receberam adiantado e falam em tornar o benefício permanente, além do dinheiro do FGTS para uso futuro) foi encoberto pela fumaceira da guerra das fake news. Tão encobertas que nem o Tribunal Superior Eleitoral está conseguindo enxergar.
Buscando cuidar das fake news, escapa ao TSE o principal. Como na anedota da velhinha que levava, todos os dias, areia de bicicleta através da fronteira. Na verdade, contrabandeava bicicletas. Bingo!
Tudo mera coincidência? Nunca antes na história do Brasil foi tão importante a fiscalização eleitoral e nunca antes foi tão difícil fiscalizar, tornando os atos da justiça como furos na água perto da tempestade promovida pelo governo-candidato-à-reeleição. Na data de 20 de outubro último, o TSE edita nova resolução. Vai adiantar?
A listagem de benesses eleitorais é extensa. Só que essas benesses são proibidas. Por lei. Veja-se: o próprio presidente-candidato disse que “não entregaria o carro com tanque cheio”.
O ponto que fica é: qual é a função do direito nesse contexto? Sim, esse direito da modernidade, que faz a interdição entre civilização e barbárie. Lembram de Hobbes?
O Brasil dá mau exemplo, pelo qual o direito perde seu mínimo grau de autonomia ao ser fagocitado pelo poder político.
O que os professores de direito — especialmente o eleitoral — devem estar pensando e ensinando aos seus alunos nestes dias de “guerra contra a Albânia”?
Bom, é a mesma pergunta que eu fazia quando o Supremo Tribunal vitimou, por um certo período, a garantia da presunção da inocência: com a Constituição na mão, ensinar o quê?
Mas tudo o que aí está é fruto de muito “esforço”. Nosso presente é o passado. A pós-modernidade na verdade é a pré-modernidade. Quando as águas da enchente desciam, esquecemos de correr para as montanhas. Achávamos que era apenas uma chuvinha.
Paro por aqui, porque há notícias nas redes sociais da ocorrência de novo ataque das terríveis forças albanesas. Não se fala de outra coisa. E as notícias das neocavernas dão conta de que mais um soldado ficou para trás. Desta vez foi um soldado de nome Silas. Pronto. O país amanhecerá coberto de Bíblias. Afinal… bom, vocês entendem. Como no caso do soldado Shumman (quer dizer, shoe)
É possível que quando formos ler o noticiário desta quadra, daqui a cem anos, concluamos que os brasileiros, às vésperas de decidir o futuro do país, atracaram-se numa discussão feroz sobre a guerra da Albânia — que não existiu. Enquanto isso, aquela velha senhora que transportava areia enriqueceu contrabandeando bicicletas.
Mas tudo é mera coincidência. Wag the dog. O rabo correndo atrás do cachorro. E fecham-se as cortinas… de fumaça.
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